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“Memória sobre a ditadura criou laços entre gerações de estudantes”, diz historiadora no Encontro às Quintas

15 ago/2014

Victoria Langland
Victoria: “As memorias coletivas de 1968 foram construídas em anos posteriores através
de palestras e de atos comemorativos”. Foto: Roberto Jesus Oscar.

Em março de 1970, um estudante da Universidade Federal do Rio de Janeiro foi preso com panfletos sobre o “dia nacional de lutas contra a repressão ditatorial”. Com uma listagem de militantes estudantis mortos e torturados, o texto que ele distribuía dizia: “Como Edson Luís, dezenas de brasileiros foram covardemente assassinados em plena praça pública ou lentamente nas prisões. Estudantes brasileiros, o dia 28 de março tem para nós um significado especial”. O trecho se refere à morte do secundarista Edson Luís de Lima Souto, primeira vítima do regime militar durante as mobilizações estudantis de 1968, episódio que causou comoção nacional.

Nos anos que se seguiram ao fato, jovens militantes se reuniriam para lembrá-lo. O apelo a uma memória de luta e resistência à ditadura foi fundamental para a reconstrução do movimento estudantil brasileiro durante a abertura lenta e gradual. Esse processo garantiu, por meio de eventos comemorativos, palestras e atos, que as novas gerações de estudantes que ingressavam na universidade e não tinham vivenciado politicamente os “anos de chumbo” se sentissem parte de um passado de oposição ao regime militar.

A análise foi feita pela historiadora norte-americana Victoria Langland, da Universidade de Michigan, que participou do Encontro às Quintas em 7 de agosto para falar sobre seu livro Speaking of flowes: Student Movements and the Making and Remembering of 1968 in Military Brazil, publicado em 2013. “Nos seus esforços de reconstruir o movimento estudantil, os estudantes apelaram a uma memória supostamente coletiva da militância e pediam para que seus colegas se sentissem parte de um passado importante do movimento estudantil, com um dever correspondente de participar do presente”, afirmou Victoria no evento.

Ao ver o 28 de março se cristalizar como um dia de lutas para os estudantes, os serviços de informação da ditadura começaram a se preocupar com a possibilidade de atos violentos ou até mesmo de “ataques terroristas” na data, relatou a pesquisadora. No entanto, quando o temor do regime começou a se dissipar – com a expectativa de que, após cinco anos, a morte de Edson Luís seria esquecida – o assassinato de outro estudante, Alexandre Vannucchi Leme, pelo regime em circunstâncias semelhantes trouxe novamente o episódio à tona. ““Os agentes poderiam ter imaginado que a ausência de uma experiência pessoal nessa morte em combinação com uma severa repressão contra as manifestações estudantis iria limpar esta data do calendário comunista”, comentou a pesquisadora.

Para não dizer que não falei das flores

Victoria Langland
“A memória é o foco de lutas sociais, na medida em que diferentes atores tentam designar
o significado do passado”, afirmou. Foto: Roberto Jesus Oscar

Em 1973, acreditava-se que, assim como Edson Luís, Leme não tinha envolvimento com movimentos de combate à ditadura, o que colaborou para uma aproximação dos dois casos. A missa realizada por ocasião da morte de Leme atraiu 5 mil estudantes no que se converteu no maior encontro estudantil desde 1968. Evocando as memórias daquele ano, ao fim da celebração, os jovens presentes entoaram juntos a canção Para não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré, à qual faz referência o livro de Victoria. Na década anterior, a composição se tornara um hino de resistência do movimento civil e estudantil à ditadura.

“As subsequentes comemorações da morte de Edson Luís conectavam as duas figuras [a dele e a de Alexandre Leme] e, assim, estabeleceram laços memorialísticos entre os estudantes da geração 68 e da 73”, declarou a historiadora; “As memorias coletivas de 1968 foram construídas nos anos posteriores através de palestras e de atos comemorativos […] Essas memórias serviram para estabelecer conexões entre gerações de maneira que facilitavam o processo de organização política”, explicou.

Victoria desenvolveu essas reflexões a partir de duas questões principais. Inicialmente ela se perguntou por que certas pessoas optam pela militância, sobretudo em uma circunstância muito difícil, como uma ditadura. Desta, deriva outra interrogação: qual é o papel da memória na decisão de militar? De acordo com ela, a questão da memória é especialmente importante quando se fala em movimento estudantil, pelo fato de que se trata de um grupo com alta rotatividade: uma vez que os jovens se formam, deixam as universidades. “Quando um estudante lembra [do passado do movimento], está se referindo a eventos dos quais não participou diretamente”, comentou. Parte da resposta aos questionamentos da pesquisadora está nas ações e disputas que moldaram a memória do movimento estudantil como um movimento de resistência ao regime, fazendo com que novas gerações de estudantes se identificassem com esse passado rememorado e se engajassem na militância. “A memória é o foco de lutas sociais muito fortes às vezes, na medida em que diferentes atores sociais tentam designar o significado do passado”, declarou.