“Compre de olhos fechados”, dizia, na década de 1970, a propaganda da “telha de fama mundial”, da Eternit, à época com cinco fábricas, 27 filiais e mais de cinco mil revendedores espalhados pelo Brasil. Além de cimento, o produto continha amianto, uma fibra mineral de alta flexibilidade e resistência, corriqueira na indústria e no comércio, apesar de a ciência ter demonstrado o nexo causal entre o seu uso e a ocorrência de vários tipos de câncer e da incurável asbestose, doença que enrijece o tecido pulmonar. A substância fazia parte da vida de milhares de brasileiros, e não só entre os trabalhadores da mineração: além da cobertura de casas e em caixas d’água, estava presente na fabricação de tintas, na indústria têxtil, em isolantes térmicos e em centenas de outros produtos.
À época, sob os auspícios da fabricante de material de construção Eternit, uma cidade se materializava a partir da exploração do amianto, no norte de Goiás. Foi chamada de Minaçu, “mina grande” em tupi-guarani, um nome literal, considerando a área de 45 quilômetros quadrados da jazida. Para trabalhar na maior mina de amianto em operação da América Latina, a empresa construiu uma vila operária e providenciou boa parte dos serviços básicos. Logo, nuvens de poeira da fibra mineral cobririam de branco o cotidiano local, repetindo a sina de Bom Jesus da Serra, na Bahia, onde a empresa exauriu um veio em 1967, após extrair 25 mil toneladas de amianto por quase três décadas. Depois partiu, deixando um passivo ambiental e social.
Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) sobre a história do amianto no Brasil — país que é um dos maiores produtores do planeta — analisa o desenvolvimento da indústria, as atividades da Eternit e da Sociedade Anônima Mineração de Amianto (SAMA) e os conflitos regulatórios, destacando as disputas entre o lobby a favor do amianto e as mobilizações sociais, políticas e científicas que resultaram na proibição da extração, industrialização, comercialização e distribuição da fibra mineral no Brasil, em 2017, pelo Superior Tribunal Federal (STF). O estudo foi orientado por Rômulo de Paula Andrade.
O veto ocorreu mais de 30 anos após a Islândia ter banido a fibra mineral, decisão seguida até agora por mais de 50 países-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS). Apesar da proibição, a mina de Minaçu voltou à ativa em 2019, quando o então governador de Goiás, Ronaldo Caiado, atualmente em seu segundo mandato, sancionou uma lei que permitia a extração do amianto no Estado para fins de exportação. Índia, Bangladesh e Indonésia figuram entre os principais importadores do Brasil. O caso segue em um limbo jurídico, aguardando julgamento, pelo STF, de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) iniciada em 2019.
“Em 1995, enquanto existia um movimento internacional de países proibindo todos os tipos de amianto, o Brasil sancionou uma lei que regularizou o uso do amianto crisotila [ou asbesto branco], sob a alegação de que essa variedade seria menos nociva”, observa o historiador Patrick Benaion, autor do estudo, frisando o papel do lobby em favor do amianto.
Naquela época, no entanto, a OMS já alertara que a fibra mineral, em todas as suas variedades, pode causar diversos tipos de câncer e doenças respiratórias crônicas, como a asbestose, além do mesotelioma, tumor maligno cuja única causa conhecida até hoje é o contato com a fibra mineral. O organismo internacional estima que mais de 200 mil pessoas morrem anualmente pela exposição ao amianto no ambiente de trabalho, totalizando mais de 70% de todas as mortes por câncer associado à ocupação. No Brasil, uma pesquisa apontou a ocorrência de 3.057 mortes por doenças relacionadas ao amianto entre 1996 e 2017. O número, porém, pode ser maior, em razão da subnotificação e do longo período de latência da substância, que dificulta o rastreamento, uma vez que a doença pode surgir décadas após o início da exposição à fibra.
Riscos do contato com o amianto eram omitidos dos trabalhadores
No Brasil, o amianto começou a ser explorado na década de 1920, em pequenas minas na Bahia, atingindo escala industrial cerca de duas décadas depois, com o grupo francês Brasilit e a Eternit belga, ainda que, pela Constituição de 1937, a autorização para exploração de riquezas mineiras em território nacional tenha sido proibida para empresas estrangeiras. A SAMA — atualmente chamada de S. A. Minerações Associadas — surgiu dois anos depois e passou a explorar a mina em Bom Jesus da Serra. Em 1967, a Eternit se tornou parceira da Brasilit no controle da SAMA. Com o reforço da legislação sobre a restrição a empresas estrangeiras, no final da década de 1990, a Eternit foi totalmente nacionalizada e é controladora da SAMA, até hoje no comando da jazida em Minaçu.
O contexto histórico e social é analisado a partir de regimes de risco industrial, conceito do historiador Christopher Sellers para definir “arranjos, formais e informais, pelos quais órgãos públicos, grupos de interesse privado e grupos cívicos se mobilizam para compreender, definir e lidar com os perigos associados a uma forma particular de produção”. Na década de 1970, por exemplo, vigorava no Brasil um “regime de risco industrial muito mais permissivo em relação ao que as empresas podiam ou não fazer, causando severos impactos ao meio ambiente e à saúde humana”, diz Benaion.
Uma das fontes do estudo, o Dossiê Amianto Brasil — elaborado, em 2010, pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados — revela inúmeras injustiças ambientais na indústria nacional do amianto. No caso de Bom Jesus da Serra, os riscos do contato com o amianto “eram omitidos dos trabalhadores e não vinham a público”. Além disso, o “Estado brasileiro agia de forma omissa”, “com variados graus de conivência por parte do poder público”.
Os danos ambientais decorrentes da mineração atingiram mais fortemente os grupos vulnerabilizados, uma desproporcionalidade que se repete em relação aos lixões e outras formas de exposição a agentes químicos, observa Benaion. “Há um recorte de classe muito evidente. E as mulheres eram muito impactadas pelo amianto, de forma múltipla, pois lavavam as roupas contaminadas dos maridos e estavam suscetíveis às doenças provenientes do contato com a fibra mineral. E quando eles adoeciam, tinham de sustentar a casa”.
Um trecho do dossiê destacado no estudo diz que, durante as três décadas de mineração em Bom Jesus da Serra, as atividades ocorreram “sem nenhum critério ambiental, de proteção do trabalhador ou da população. As escavações e o processamento do mineral eram feitos de forma absolutamente caótica. Conforme testemunhos e fotos da época, sobre a região pairava, permanentemente, uma nuvem branca de amianto”.
Em Goiás, a Eternit/SAMA construiu uma vila operária, atraindo uma grande quantidade de trabalhadores. Além de trabalho, criou uma estrutura com escola, hospital, creche, clube recreativo. Não à toa, boa parte da população de Minaçu reagiu negativamente diante da mobilização em prol do banimento do amianto. O poder público local apoiava a continuidade das atividades da mina, alegando que o uso do amianto crisotila era seguro e controlado. O argumento central para a manutenção da atividade era o mesmo de vários outros casos de injustiças ambientais e repetido pelo lobby a favor do amianto, diz o historiador: a geração de empregos diretos e indiretos.
Para realizar o estudo, que contribui para uma historiografia ainda incipiente sobre o tema no Brasil, Benaion investigou uma variedade de fontes documentais e depoimentos coletados por pesquisadores das áreas de economia e geografia humana. Em depoimento ao Grupo de Trabalho da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, que resultou no Dossiê Amianto Brasil, um ex-operário da Eternit, que trabalhara entre 1968 e 1971, relatou o descaso em relação aos riscos da fibra: “Nós não éramos informados do mal que o amianto causava. Não recebíamos equipamento de proteção, o EPI. Ninguém recebia nada. Nos intervalos de almoço ou jantar, ainda dormíamos em cima das sacas de amianto, sem nenhuma advertência de que não poderia, porque o amianto é cancerígeno”.
Na época, além do amianto crisotila, que representa mais de 90% do uso comercial na atualidade, explorava-se variedades de maior potencial patogênico. Os efeitos nocivos da exposição ao amianto eram há muito conhecidos, uma vez que o primeiro relato oficial publicado data de 1907, sobre um operário que trabalhara com a fibra mineral por 14 anos e morrera de asbestose aos 36 anos. “Desde a década de 50 e 60 já existia um nexo muito estabelecido cientificamente mostrando que o amianto causa câncer, independentemente da variedade”, destaca o historiador, frisando que não há limites de tolerância para a exposição.
Criação do SUS e da ABREA foram fundamentais para a proibição
Na década de 1970, quando a produção mundial de amianto chegou ao ápice, ampliou-se no cenário internacional a movimentação de trabalhadores, vítimas, sindicatos e órgãos públicos em prol do banimento da fibra mineral, levando ao julgamento da alta administração da Eternit em Turim, na Itália. No Brasil, a transformação na forma de se compreender as consequências do uso do amianto a partir da década de 1990. A mudança de regime de risco ambiental foi influenciada pelas discussões que resultaram na criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e pelo surgimento da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto (ABREA), em 1995. “A ideia de proteção à saúde do trabalhador nem existia. O SUS trouxe essa perspectiva. Com ele, surgiram novas concepções de saúde que deram uma bagagem jurídica à questão do amianto”, diz o historiador, que se interessou pelo tema ao conhecer o Mapa de Conflitos – Injustiças Ambientais e Saúde no Brasil, produzido pela Fiocruz, entre outras instituições.
❝ “A análise desse lobby, com base em documentos institucionais, relatórios de tribunais e publicações científicas, demonstrou como atores econômicos e políticos buscaram sistematicamente deslegitimar o consenso científico e prolongar a exploração e comercialização do amianto a qualquer custo”❞
Patrick Benaion
Historiador
Em seu estudo, Benaion mostra que o lobby da indústria do amianto agia por meio da “cooptação de parlamentares para defender sua causa, promover manobras legais (…), contestando a constitucionalidade das leis pró-banimento do amianto”. Além disso, “recrutavam cientistas e médicos renomados para legitimar e propagandear determinados enunciados científicos”. O movimento a favor do uso da fibra envolvia ainda uma série de ações por parte das empresas, como dificultar “o acesso público aos laudos médicos dos que foram diretamente expostos ao amianto”, “realizar acordos extrajudiciais” com os atingidos e “incitar dúvidas em consensos científicos já estabelecidos”.
O lobby alegava que a produção do amianto havia passado por grandes transformações e se tornara segura. Após várias ações judiciais em torno do amianto, o Instituto Brasileiro de Crisotila (IBC), um dos atores do lobby da indústria, promoveu, em 2012, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3.937). “A análise desse lobby, com base em documentos institucionais, relatórios de tribunais e publicações científicas, demonstrou como atores econômicos e políticos buscaram sistematicamente deslegitimar o consenso científico e prolongar a exploração e comercialização do amianto a qualquer custo”, concluiu Benaion, acrescentando que, por outro lado, uma rede formada, entre outros atores, por cientistas, movimentos sociais e instituições de saúde, “desempenharam um papel essencial na construção de evidências e na formulação de políticas públicas”.
Enquanto o Brasil aguarda a batalha jurídica sobre a produção de amianto, uma vez que a legislação de Goiás foi questionada e está em julgamento no STF, Minaçu é alvo de uma nova investida de empresas estrangeiras. Uma área situada na serra ao redor da cidade está sendo escavada por uma mineradora controlada por um fundo privado americano, extraindo terras raras para a exportação. O Brasil detém a segunda maior reserva mundial de terras raras, minerais essenciais para a transição energética, usados na fabricação de turbinas eólicas, painéis solares e veículos elétricos.
“A injustiça ambiental pode se dar também pela ausência do Estado, seja por meio da falta de políticas públicas ou de regulação”, diz o historiador sobre o caso da indústria do amianto, frisando que a inação se deu tanto em governos de direita quanto de esquerda. Que os próximos capítulos dessa história sejam em favor da saúde pública e do meio ambiente.