Quem hoje se empenha na tarefa de investigar a febre amarela no século 19 certamente se depara com a impossibilidade de encontrar documentos e publicações da época que citem nominalmente a doença. Esse é um sinal de que a enfermidade não existia na época? Da forma como a descrevemos e denominamos hoje, não, aponta a historiadora Mónica García, da Universidad del Rosario (Colômbia).
“A febre amarela – como entidade patológica independente que conhecemos hoje – não existia no século 19”, afirmou ao participar da 100ª edição do seminário internacional WHO Global Health Histories, em dezembro de 2016 na Fiocruz. A declaração da pesquisadora teve por objetivo provocar uma discussão sobre a maneira como os historiadores vêm construindo a história das doenças: em grande parte assumindo implicitamente em suas pesquisas as noções contemporâneas acerca de tais enfermidades a partir da separação natureza/cultura. “Eliminar essa distinção natureza/cultura representa um desafio. Porém, ao fazê-lo, acredito que se abrem novos objetos e temas de pesquisa que não são possíveis de enxergar se mantivermos tal distinção”, declarou.
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Segundo alguns historiadores como Erwin Ackerknecht e William Coleman, na Europa e nos Estados Unidos, a febre amarela e a malária deixaram de ser consideradas variações de uma mesma doença por volta de 1860, com base em critérios clínicos e epidemiológicos, apontou Mónica. Na Colômbia, por outro lado, historiadores mostraram que, apenas em finais de 1887 é que a enfermidade assumiria tal identidade e por métodos e razões distintas.
Ao fixar a natureza da febre segundo as noções contemporâneas, estamos impondo às comunidades científicas passadas formas de estabelecer critérios de objetividade e cientificidade que não correspondem às que tais atores usaram.
No século 19, as febres apareciam entre as patologias mais importantes ao lado das inflamações, envenenamentos, hemorragias e doenças específicas dos órgãos e tecidos. De acordo com a historiadora, os médicos classificavam as febres segundo os sintomas e de acordo com um sistema tomado emprestado da botânica, que as organizava em torno de gênero, espécies e variedades. Os critérios para classifica-las nesse esquema eram a variação da febre ao longo do tempo e os sintomas a elas associados, como dor de cabeça, hemorragia e diarreia.
Um tratado daquela época, classificava as febres em cinco gêneros: contínuas, eruptivas, intermitentes, remitentes (ou periódicas) e hécticas. Nesse documento, a febre amarela aparecia como uma das espécies de febres contínuas – o tifo da América – ao lado da febre tifoide e do tifo europeu, entre outros, afirmou Mónica. A fronteira entre uma e outra, no entanto, era fluída. As descrições sobre a espécie amarela se baseavam em informações de epidemias nos Estados Unidos, Europa e nas Antilhas francesas.
De acordo com a pesquisadora, na Colômbia, assim como em outras regiões do mundo, os médicos locais construíram um sistema de classificação de febres próprios. Para eles, a febre amarela, diferentemente do que diziam os europeus, era uma variedade das febres periódicas, ao lado da febre inflamatória, por exemplo. Eles apontavam que a lesão típica de todas as febres deveria estar no sangue e enfatizavam a origem miasmática e local de todas as febres periódicas, incluindo a amarela. Essa ênfase no local serviu de argumento para que os médicos colombianos afirmassem estar em posição privilegiada ante os europeus para conhecer melhor tais febres.
“Longe de enquadrar essa preocupação dos médicos colombianos no debate sobre o que os historiadores consideram centro e periferia na produção da ciência, trata-se de explorar a produção de conhecimento em uma comunidade médica ou científica particular a partir de critérios de objetividade que tal comunidade considerava legítimos e que são distintos dos contemporâneos”, declarou Mónica. “Ao fixar a natureza da febre segundo as noções contemporâneas, estamos indiretamente impondo às comunidades científicas passadas formas de estabelecer critérios de objetividade e cientificidade […] que não correspondem às que tais atores usaram.”
Para Mónica, o uso de noções contemporâneas da febre amarela como guia consciente ou inconsciente para historizá-la resulta em um esquecimento histórico significativo: que muito antes de os funcionários da Fundação Rockefeller, em conjunto com médicos colombianos e brasileiros, estabelecerem o ciclo selvático do que hoje conhecemos como febre amarela, as comunidades médicas latino-americanas já debatiam intensamente, entre os anos 1920 e 1930, a ocorrência de febres periódicas no interior dos países, em zonas rurais, em populações que viviam longe dos portos marítimos e fluviais. Entre 1930 e 1940, a Fundação Rockefeller financiou campanhas para combater o mosquito transmissor da febre em assentamentos urbanos de alguns países latino-americanos.
A pesquisadora concluiu sua apresentação com um convite múltiplo aos historiadores: “tomar como ponto de partida a história da febre amarela não o que sabemos sobre ela, mas sim o que pensavam sobre ela os contemporâneos sobre os quais estamos construindo nossas histórias; a correr o risco de assumir que não somente o saber sobre a febre muda, mas que o próprio objeto – a natureza – também muda no processo de conhecimento. Trata-se de historizar não apenas o conhecimento, mas a própria natureza, de historizar as formas de objetividade com que construímos os fatos científicos no passado e hoje”, disse Mónica.