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Dos aquários às margens da Avenida Brasil à Antártica: a busca de pesquisadores por zoonoses em animais aquáticos

14 jun/2022

No século 20, pesquisas detectaram poluição nascente na Baía de Guanabara e hoje avançam na investigação de novos patógenos     

   Ilustração:Silmara Mansur   

Ilustração: microscópio em primeiro plano com imagem azul ao fundo com geleiras, peixes, caranguejos, entre outros exemplares da fauna marinha

Por Karine Rodrigues  

Há pouco mais de um século, a Baía de Guanabara que hoje engole 4,5 milhões de litros de esgoto por dia, atraiu a atenção do cientista Adolpho Lutz (1855-1940) com as suas águas cristalinas e fauna variada. Recém transferido do Instituto Bacteriológico de São Paulo para o Instituto Oswaldo Cruz, embrião da Fiocruz, em 1908, o pesquisador seguia até as praias e os manguezais às margens da instituição, atual Manguinhos, zona norte do Rio, para coletar crustáceos. O material fez parte de estudos precursores sobre hidrobiologia no país.   

O Instituto Oswaldo Cruz é pioneiro nos estudos de hidrobiologia no Brasil. Sempre esteve à frente de importantes pesquisas na área, em especial, sobre a vida marinha, e atento ao impacto causado pela intervenção humana no meio ambiente

Entre o início do século passado e o cenário atual, evidenciado pelo despejo diário de 98 toneladas de lixo na Baía de Guanabara, segundo dados da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), há uma história de pioneirismos da Fiocruz nas pesquisas sobre a vida de organismos que habitam o meio aquático, seja o marinho ou de água doce. Dela fazem parte, por exemplo, os primeiros estudos sobre cianobactérias realizados no início do século 20, as pesquisas em curso nos laboratórios de Avaliação e Promoção da Saúde Ambiental (Lapsa) e de Helmintos Parasitos de Peixes (LHPP), ambos do Instituto Oswaldo Cruz, além do Fioantar, projeto da Fiocruz que integra o Programa Antártico Brasileiro. Desde 2020, a instituição conta com um laboratório exclusivo e permanente na Estação Comandante Ferraz. A quarta expedição de pesquisadores da fundação ao continente foi encerrada recentemente, em abril.  

"O Instituto Oswaldo Cruz é pioneiro nos estudos de hidrobiologia no Brasil. Sempre esteve à frente de importantes pesquisas na área, em especial, sobre a vida marinha, e atento ao impacto causado pela intervenção humana no meio ambiente”, observa Magali Romero Sá, pesquisadora e vice-diretora de Pesquisa e Educação da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Graduada em Ciências Biológicas e doutora em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Durham, na Inglaterra, ela refez os primeiros passos da pesquisa em hidrobiologia no país.   

Aquários tinham ligação direta com o mar  

A localização do Instituto Oswaldo Cruz, às margens da Baía de Guanabara, favoreceu o início dos estudos na área, observa Magali. Além da proximidade com um habitat propício às pesquisas em hidrobiologia, existia no núcleo original da Fiocruz uma edificação chamada Aquário. O prédio em estilo art noveau concluído em 1909 possuía laboratório, sala, tanques para experiências e duas piscinas para cultura de animais, uma com água doce e outra com água salgada, com ligação direta com o mar, recebendo, durante as marés altas, águas e animais. Apesar da importância histórica e arquitetônica da construção, ela não chegou a ser utilizada e foi demolida na década de 1960.  

Prédio em construção na Fiocruz
Edificação tinha estrutura para cultura de animais de água doce e de água salgada. Foto: COC/Fiocruz

Naqueles primeiros anos do século 20, Oswaldo Cruz (1872-1917) reuniu um time invejável na área de hidrobiologia, com nomes como José Gomes de Farias (1887-1962); Aristides Marques da Cunha (1887-1949); Olympio da Fonseca Filho (1895-1978); e Henrique Aragão (1879-1956), considerado o fundador da pesquisa virológica e protozoológica na instituição. Pesquisadores estrangeiros também demonstraram interesse pela vida aquática no entorno, como o protozoologista Stanislaus von Prowazek (1875-1915), do Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo, e o zoólogo Max Hartmann (1876-1962), do Instituto de Doenças Infecciosas de Berlim.  

Em 1912, com a criação, na Praia Vermelha, da Inspetoria de Pesca, vinculada ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz passaram a desenvolver lá as pesquisas na área de zoologia marinha. Mas não por muito tempo. Fechada em 1915 por falta de verbas, as atividades foram retomadas no Instituto Oswaldo Cruz. Dois anos depois, Gomes de Farias e Marcos da Cunha realizaram estudos sobre microplâncton, enumerando espécies, frequência de ocorrência, características morfológicas.   

“Fizeram um inventário considerado pioneiro e bastante abrangente, numa época de Baía de Guanabara de águas cristalinas”, diz Magali, destacando que os trabalhos então realizados foram importantes também para a saúde alimentar, pois já sinalizavam a contaminação dos peixes da Baía de Guanabara. “Gomes de Farias foi autor do primeiro trabalho sobre proliferação de algas na região e apontava para a relação com a mortandade de peixes”.   

Aquário do Instituto Oswaldo Cruz às margens da Baía de Guanabara
Estação de Hidribiologia na Ilha do Pinheiro, às margens da Baía de Guanabara. Foto: COC/Fiocruz

Embora tenha havido um período de arrefecimento na história da instituição em relação às pesquisas na área, decorrência da falta de recursos e da perda de autonomia institucional, a efervescência dos primeiros anos do século 20 logo voltou à tona. Diretores como Aragão (1942-1949) e Fonseca Filho (1949-1954), que o sucedeu, trouxeram pesquisadores de renome internacional. As pesquisas retomaram o fôlego também com a chegada de um novo pesquisador, Lejeune de Oliveira (1915-1983), e a criação da Estação de Hidrobiologia, na Ilha do Pinheiro, contígua ao instituto, equipada com laboratório, aquário marinho e tanques de piscicultura. “Os cursos sobre Hidrobiologia eram disputados e reuniam mais de 70 alunos. Foi um momento de enorme ebulição e de extrema relevância, que não pode ser esquecido e que depois a instituição retomou, com destaque para o trabalho que estamos realizando na Antártica”, afirma Magali.  

Com aterros, Avenida Brasil e poluição, espécies sumiram   

Cinco décadas após as coletas feitas por Adolpho Lutz, o cenário na região havia mudado de forma acentuada. Mangues onde vicejava uma rica biodiversidade deram lugar à avenida Brasil e à ilha do Fundão. Rejeitos de indústrias que passaram a ocupar a vizinhança da Baía de Guanabara trouxeram novas cores e cheiros. Espécies começaram a desaparecer.   

Em 1958, a análise da coleção de crustáceos Lutz já apontava que as decisões tomadas para a região seguiam um rumo contrário à preservação ambiental, pois espécies reunidas pelo cientista na primeira década do século 20 já não mais existiam. O material avaliado por Lejeune de Oliveira, então chefe da Estação de Hidrobiologia na Ilha do Pinheiro, revelou indicadores biológicos da degradação do corpo de água. Apreensivo com o desaparecimento das “águas limpíssimas e puras” da Baía e com a perda da ligação direta dos aquários com o mar em decorrência do aterramento, temeu pela continuidade das pesquisas em hidrobiologia. O pesquisador também realizou estudos valiosos sobre poluição das lagoas, como a Rodrigo de Freitas e a de Sepetiba.  

“Aquela fauna que estava inteira em harmonia com aquele ambiente, aquelas ilhas, desapareceram com a avenida Brasil e a poluição enorme na Baía de Guanabara. Os estudos de Lejeune foram marco sobre as mudanças que estavam ocorrendo ali. Ele publicou o primeiro artigo científico sobre poluição na região”, diz a pesquisadora da Casa.    

O mapeamento realizado por Magali segue até a década de 1970, quando ocorreu uma ruptura nos estudos em hidrobiologia em decorrência do episódio conhecido como Massacre de Manguinhos, quando pesquisadores da Fiocruz foram cassados pela ditadura militar. Mas a produção de conhecimento na área prosseguiu e tem gerado importantes contribuições, observa Cláudia Portes Santos, do Laboratório de Avaliação e Promoção da Saúde Ambiental (Lapsa) do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), onde são realizadas pesquisas básicas e aplicadas interdisciplinares sobre biodiversidade que relacionam saúde e ambiente.   

IOC estuda poluentes e parasitos em espécies consumidas pelo homem  

“A diversidade de linhas de pesquisa é parte do IOC. Nunca sabemos de onde vai vir uma zoonose. Quanto mais linhas de pesquisa houver, mais vamos estar preparados para responder a essas demandas ao longo do tempo. Há pesquisas na área de oceanografia, química ambiental, ecotoxicologia, segurança de alimentos”, elenca Cláudia, bacharel em Ciências Biológicas, com pós-doutorado no Museu Histórico Natural em Londres, que até novembro passado chefiava o laboratório.   

Cláudia, que está em vias de se aposentar, trabalha com a biodiversidade dos helmintos parasitos de peixes comerciais, com potencial transmissão ao homem. São pesquisas que podem subsidiar as políticas públicas para a segurança no consumo de peixes pela população do Estado. “Na linha de ecotoxicologia, uma aluna minha acabou de defender um trabalho sobre mexilhões em Jurujuba, em Niterói, e na Praia Vermelha, no Rio. A análise indicou que os níveis médios de metais pesados, como arsênio, cromo, selênio e zinco, excederam os limites das agências reguladoras nacionais e internacionais. A contaminação está também no mexilhão, que é um filtrador, pega tudo e passa para o homem, pois esses mexilhões são vendidos em restaurantes e consumidos”, observa Cláudia.  

Segundo a pesquisadora, em decorrência da degradação ambiental, os ecossistemas de água doce têm sido alvo da proliferação de cianobactérias, que representam um risco à saúde humana e animal, pois podem produzir toxinas que atacam o fígado, com potencial de provocar necrose hepática e até a morte, além de interferirem no sistema nervoso e na pele. “Algumas das cianobactérias produzem substâncias tóxicas. Realizamos testes em peixes e parasitos e detectamos que elas causam paralisia, embora temporária”, diz, lembrando a morte de dezenas de pacientes submetidos à hemodiálise em Pernambuco, em razão de a água estar contaminada com um tipo de cianobactéria.  

Além das linhas de pesquisas com peixes, mamíferos marinhos, mexilhões, microcrustáceos e cianobactérias, o Lapsa investiga ainda os efeitos de poluentes ambientais em diversas espécies aquáticas, como raias e tubarões; trabalha com monitoramento e avaliação ecotoxicológica de cocaína e benzoilecgonina em águas superficiais e de abastecimento; estuda o desenvolvimento de fármacos sintéticos e derivados de produtos naturais atuando em respostas inflamatórias; e busca alternativas ao controle de florações de cianobactérias em águas tropicais. Essas pesquisas são conduzidas, respectivamente, por Clélia Christina Mello Silva Almeida da Costa, atual chefe da unidade, Rachel Ann Hauser Davis, Enrico Mendes Saggioro; Robson Xavier Faria e Aloysio da Silva Ferrão Filho.  

Pesquisas focadas em helmintos parasitos de peixes também são desenvolvidas na Fiocruz, e com destaque crescente, em decorrência da expansão mundial da piscicultura. O estudo que identifica, nomeia e classifica parasitos em espécies comerciais consumidas no Brasil, por exemplo, contribui para a inspeção sanitária do pescado para consumo humano, ao possibilitar a criação de procedimentos que poderão reduzir o risco de contaminação da população, explica Simone Cohen, chefe do Laboratório de Helmintos Parasitos de Peixes (LHPP), do Instituto Oswaldo Cruz (IOC).  

O laboratório desenvolveu projetos em peixes do Rio Paraná e do reservatório da Usina Hidrelétrica de Itaipú Binacional e dos açudes e viveiros do Departamento Nacional de Obras contra as Secas em diversas localidades do país. Um dos estudos realizados nos últimos anos foca na descrição da biodiversidade de helmintos em peixes da Bacia Hidrográfica Araguaia-Tocantins, impactada pela construção de barragens na região. O laboratório também tem atuado em estudos de helmintos parasitos de atuns e afins em bacias costeiras do Brasil. “Há espécies de helmintos com potencial de transmissão ao homem. A patologia pode ser evitada por cozimento, mas na culinária japonesa o hábito é comer peixe cru. E há helmintos cujas larvas ficam na musculatura do peixe. Se não houver um controle sanitário, fica difícil”, explica a pesquisadora.  

No Fiolab, busca por novas tecnologias em saúde e potenciais ameaças  

Espécies que não são capazes de transmitir doença ao homem, ainda assim, podem resultar em grande prejuízo econômico, por causa do ataque aos peixes. A equipe já foi chamada para avaliar a morte de espécies de pescado sem causa aparente, em Itaipu e em Itaperuna, no Rio de Janeiro. “A partir da coleta, análise e identificação do parasito, podemos propor medidas preventivas”, diz Simone, acrescentando que o laboratório desenvolve dois estudos em parceria o Laboratório de Avaliação e Promoção da Saúde Ambiental (Lapsa), na área de ecotoxologia.   

Pesquisadores da Fiocruz realizam pesquisa de campo na Antártica
Pesquisadores da Fiocruz realizam pesquisas de campo na Antártica. Foto: Peter Ilicciev

Na Antártica, a Fiocruz mantém o Fiolab, laboratório de biossegurança preparado para responder às necessidades de vigilância epidemiológica e sanitária do país e também dar suporte às pesquisas em saúde e ambiente na região, sob a perspectiva do conceito One Health, que une o cuidado humano, animal e do meio ambiente como estratégia bem-sucedida de esforços em saúde pública e garantia do bem-estar das populações. As pesquisas desenvolvidas na Antártica se dividem em duas linhas centrais: investigação de potenciais ameaças que o ambiente da região pode oferecer à saúde humana; e busca de oportunidades para o desenvolvimento de novas tecnologias e produtos em saúde, a partir da análise de organismos que vivem no ambiente extremo do continente. Cientistas de cerca de 10 laboratórios da Fiocruz estão trabalhando em parceria para a produção desse conhecimento em vigilância e prevenção epidemiológica e bioprospecção.