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Com investigação e punição dos crimes da ditadura, militares dificilmente teriam voltado à cena pública, avalia Sá Motta

Referência nos estudos sobre o golpe de 1964, historiador e professor da UFMG abre o ano letivo da Casa em 1º de abril com aula sobre o tema

Karine Rodrigues

20 mar/2024

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Às vésperas dos 60 anos do golpe, as discussões sobre a ditadura militar brasileira instaurada em 1964 estão em alta. Em especial, nas universidades, “um bastião contra a proliferação das narrativas farsescas, sobre a ditadura e outros temas”, na opinião do historiador Rodrigo Patto Sá Motta, referência nos estudos sobre questões relacionadas aos anos de chumbo, como o golpe de 64, anticomunismo, repressão política e memória. 

Convidado para abrir o ano letivo dos cursos de pós-graduação das áreas de história, patrimônio cultural e divulgação científica da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), com a aula inaugural 1964: história e historiografia de um projeto modernizador-autoritário, a ser realizada dia 1º de abril, às 10h, Motta é partidário da ideia de que a responsabilização dos agentes do Estado pelos crimes cometidos durante a ditadura poderia ter evitado episódios recentes no país, que colocaram a democracia em xeque. 

“Eu estou entre os que creem que se nossa transição tivesse incluído a investigação e punição desses crimes a democracia teria ganhado em consistência, e os militares dificilmente teriam voltado ao cenário público, como vimos recentemente. Mas o cenário político não era favorável ao aprofundamento da justiça de transição no Brasil, como ainda é complexo hoje, devido a resistências dentro do próprio governo”, declarou professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em entrevista à Casa de Oswaldo Cruz, no início deste mês.

Autor, entre outros livros, de Passados presentes – O golpe de 1964 e a ditadura militar (Zahar, 2021); Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (Eduff, 2020); Jango e o golpe de 1964 na caricatura (Zahar, 2006) e As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária (Zahar, 2014), Sá Motta abordou durante a entrevista fatos ocorridos há 60 anos e sua correlação com eventos mais recentes e discorreu sobre questões como polarização, resistência, ascensão da extrema direita e cultura política brasileira, que, segundo ele, tem como um de seus traços essenciais a tendência à acomodação/conciliação: 

Estudar a adesão e a acomodação é essencial para compreender como as ditaduras operam, e também porque os discursos de extrema direita continuam a ter apelo público hoje

RODRIGO PATTO SÁ MOTTA

HISTORIADOR

“No atual momento vemos mais uma vez as forças da acomodação operando, por exemplo, nos setores que defendem evitar choques com os militares a propósito de suas ações golpistas, tanto em 1964 como ao fim do governo Bolsonaro”, declarou o pesquisador, para quem a principal contribuição dos historiadores acadêmicos em tempos de visões positivas sobre a ditadura e milícias digitais “é produzir e divulgar conhecimento confiável, baseado em procedimentos verificáveis, evidências factuais e análise lógica”. 

Sá Motta vai ministrar a aula inaugural no Salão de Conferência do Centro de Documentação e História da Saúde (CDHS), no campus da Fiocruz em Manguinhos, no Rio de Janeiro. Aberto ao público, o evento contará com moderação de Gilberto Hochman, pesquisador da Casa, e será transmitido ao vivo pelo canal do YouTube e contará com tradução para a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Confira abaixo a entrevista: 

O golpe militar de 1964 ocorreu há 60 anos. Há, portanto, gerações de brasileiros que não vivenciaram o regime e que dependem exclusivamente dos discursos em circulação para compreenderem o que ocorreu no Brasil durante a ditadura. De que forma, além da investigação acadêmica sobre o tema, historiadores podem contribuir, em um contexto no qual milícias digitais e políticos têm disseminado uma visão positiva da ditadura, falseando o que dizem fontes documentais e testemunhas?  

A principal contribuição dos historiadores acadêmicos é produzir e divulgar conhecimento confiável, baseado em procedimentos verificáveis, evidências factuais e análise lógica, um conhecimento que tem melhor qualidade porque submetido ao crivo da crítica dos pares. É importante mostrar isso ao grande público, pois ele é submetido a uma enxurrada de informações e desinformações disseminadas pelas redes e mídias sociais. Os propagandistas de direita dizem que o conhecimento acadêmico não é confiável, mas trata-se do contrário, pois as universidades mantêm procedimentos que foram aperfeiçoados ao longo dos séculos. Não é vender uma ilusão cientificista, pois naturalmente há limites e falhas, mas a história acadêmica é muito melhor do que as versões toscas emitidas por youtubers e influencers comprometidos apenas com seus preconceitos e convicções ideológicas.  

Por outro lado, não basta produzir conhecimento de boa qualidade, é preciso divulgá-lo para além do sistema universitário e escolar, e entrar na disputa com os manipuladores e falsificadores da história. Trata-se de encontrar maneiras de alcançar o grande público por meio das mídias, sejam as tradicionais, sejam os novos meios, principalmente digitais. Muitos historiadores têm se empenhado nisso, principalmente jovens, mas é preciso ampliar os esforços nessa direção. 

O que o cenário político existente hoje no país pode nos revelar sobre o nosso passado? 

Eu destaco principalmente o fato de que existe resistência muito grande nas classes médias e superiores contra mudanças sociais, por suaves que sejam. É um problema histórico e estrutural, que se tornou muito visível em vários contextos, como em 1945-47, 1961-64, e na fase recente, durante os governos de Lula e Dilma, cujas políticas visando à correção de desigualdades raciais e de gênero geraram grande reação conservadora. É uma situação parecida com o que se viu em momentos históricos anteriores, com a retórica conservadora mobilizando temas semelhantes, como a imagem da ameaça comunista, ou dos supostos ataques à família e à moral religiosa tradicional. É claro que classes privilegiadas em qualquer parte do mundo tendem a lutar por seus privilégios, mas no caso do Brasil vemos duas tendências que se combinam para produzir resultados perversos: as classes superiores resistem com unhas e dentes mesmo contra mudanças sociais suaves; e as classes inferiores mostram-se incapazes de impor-se de modo a tornar as mudanças sociais irreversíveis. 

Em Passado Presente, seu último livro, você apresenta três principais tipos de atitudes diante de governantes e gestões autoritárias: adesão, resistência e acomodação. Os estudos acadêmicos realizados no Brasil têm se ocupado em analisar esses comportamentos (adesão, resistência, acomodação) numa perspectiva histórica de forma ampla, fazendo cruzamentos entre as atitudes e o grau de informação que cada grupo tem sobre essas gestões e governos autoritários, por exemplo?   

Os estudos sobre atitudes sociais ainda são incipientes, temos muito ainda a fazer nessa direção, mas já há alguns interessantes, que buscam mostrar a diversidade de comportamentos e atitudes em relação aos regimes autoritários. Eu propus que adesão, resistência e acomodação compõem uma tipologia capaz de enquadrar a maioria das formas de atitude, embora fora dela ainda temos a indiferença e a autoexclusão política. As diferentes formas de atitude não dependem apenas do grau de informação sobre os governos, que muitas vezes é afetado pela propaganda oficial e a censura, mais eficazes décadas atrás do que hoje, pois não existiam as redes sociais e os meios digitais, que são menos controláveis. Outros fatores têm impacto importante, como a identidade ideológica com os governantes, a manipulação dos medos (ao comunismo e ao “terrorismo”, por exemplo), e o desempenho econômico, sempre uma fonte importante de legitimação política no Brasil. O mais importante a destacar aqui é que estudar atitudes e comportamentos é importante para entender como as ditaduras funcionam, e porque duram tanto, vinte e um anos no nosso caso! Assim, estudar a adesão e a acomodação é essencial para compreender como as ditaduras operam, e também porque os discursos de extrema direita continuam a ter apelo público hoje em dia. Mas, por outro lado, não se deve subestimar que as ditaduras só existem e duram porque estão sustentadas também pelas forças repressivas e pela coação, e tampouco subestimar as atitudes de recusa ao poder autoritário e de resistência, que tiveram seu papel no processo de superação da ditadura.  

Em alguma medida, a eleição de um candidato que fazia referências positivas à ditadura, em 2018, surpreendeu uma parcela da população, que acreditava que aqui no Brasil ditadura nunca mais. A Anistia, que representou a escolha do perdão e do esquecimento sobre as atrocidades cometidas durante o regime militar, explicaria uma sensação de incompletude no processo democrático brasileiro?   

A anistia de 1979 inicialmente beneficiou a pessoas perseguidas pela ditadura, tanto as que passaram ou passariam por processos criminais, como pessoas que perderam direitos políticos e empregos (cargos públicos, principalmente). Então, ela teve um efeito positivo na época, no sentido de ampliar o processo de paulatina transição democrática. Mas a lei trouxe embutida também a autoanistia, ou seja, o perdão aos crimes cometidos pelos agentes do Estado. Na ocasião, isso não provocou tanta polêmica, até porque os militares ainda governavam, mas a longo prazo se tornou um problema político sério. Esse perdão aos agentes do Estado é um tanto bizarro, porque anistias sempre funcionaram antes para beneficiar as vítimas do Estado. E tem o problema adicional de que muitos dos crimes em questão são imprescritíveis, como desaparecimento de corpos, então, eles não poderiam ser esquecidos. Eu estou entre os que creem que se nossa transição tivesse incluído a investigação e punição desses crimes a democracia teria ganhado em consistência, e os militares dificilmente teriam voltado ao cenário público, como vimos recentemente. Mas o cenário político não era favorável ao aprofundamento da justiça de transição no Brasil, como ainda é complexo hoje, devido a resistências dentro do próprio governo. 

O que os acontecimentos registrados na última década no país podem revelar sobre a cultura política brasileira?  

A cultura política brasileira possui vários elementos e aspectos, mas penso que dois de seus traços essenciais são a tendência à acomodação/conciliação e a falta de fé nas instituições e na ação coletiva, o que se combina ao personalismo (especialmente a identificação com líderes singulares). A situação crítica e a polarização política nos últimos anos chacoalharam essas tradições, e em certo momento nos passou a impressão de que viveríamos o marco de uma nova cultura política. Penso principalmente na acomodação, que pareceu estar em processo de superação devido à radicalização da extrema direita, principalmente no governo Bolsonaro, que aparentemente buscava rupturas e evitava qualquer tipo de compromisso. Mas a tendência à acomodação se fez presente novamente, quando Congresso e Judiciário buscaram um meio termo com Bolsonaro, para evitar um choque maior ou a necessidade de um impeachment, e ele aceitou acordos, principalmente com o Congresso (o centrão). No atual momento vemos mais uma vez as forças da acomodação operando, por exemplo, nos setores que defendem evitar choques com os militares a propósito de suas ações golpistas, tanto em 1964 como ao fim do governo Bolsonaro. E outro traço que mencionei, o personalismo, segue forte como sempre, de modo que talvez vamos nos manter no leito das tradições políticas brasileiras, em que as mudanças, quando ocorrem, são lentas e base no compromisso. Veremos. 

A crença em narrativas falsas sobre a ditadura decorre também do nível de debate político existente hoje nas escolas e nas universidades?   

Não. Acho que a relação que se pode estabelecer entre as narrativas falsas e o sistema escolar-universitário é que a proliferação das primeiras representa uma derrota para o sistema de ensino, que se baseia em procedimentos científicos e conhecimento submetido à crítica, como comentei em questão anterior. Na verdade, as narrativas falseadoras e negacionistas sobre a história e as ciências em geral, se divulgaram por fora (a partir das mídias sociais) e contra o sistema escolar formal, que elas veem como adversários a serem combatidos. As universidades, principalmente, são alvos desses grupos porque elas são um bastião contra a proliferação das narrativas farsescas, sobre a ditadura e outros temas também. A ideia desses grupos é descredenciar e desmantelar as universidades e demais instituições escolares e científicas para que seus discursos sejam divulgados sem oposição, de modo a conseguirem construir a hegemonia cultural que almejam para estabelecer uma dominação política duradoura. Por isso, a importância de fortalecer as instituições acadêmicas e científicas, pois elas são barreiras importantes contra a extrema direita autoritária. 

Mesmo diante da polarização extrema que temos visto nos últimos pleitos eleitorais, há heterogeneidades dentro de cada um dos grupos em disputa. Qual a importância de se analisar essa pluralidade dentro de um mesmo grupo?   

Um dos efeitos ruins da polarização é que esse processo gera uma simplificação do debate político e o estreitamento das opções programáticas. Mas é importante estar atento à necessidade de estimular o pluralismo, para arejar o debate político e ampliar o leque de opções, pois os tempos são difíceis e é preciso buscar novas alternativas. Por exemplo, construir um arranjo econômico que propicie crescimento sustentado com distribuição de renda. Mas a preservação do pluralismo depende também de que as tendências autoritárias sejam contidas, especialmente as que se juntaram no bolsonarismo, que recentemente tentou uma espécie de golpe de Estado. E para tanto é importante que as pessoas de direita moderadas e não autoritárias entendam que a extrema direita é uma ameaça a todos, pois seu projeto de poder implica encerrar o debate político e bloquear o pluralismo de ideias.