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Como a saúde ganhou espaço na política externa brasileira a partir de um modelo inovador de cooperação internacional

Artigo em HCS-Manguinhos analisa abordagem criada por grupo de sanitaristas liderado por José Roberto Ferreira

Karine Rodrigues

22 out/2025

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Que tipo de colaboração entre países pode ser desenvolvida para enfrentar o aumento de casos de doenças transmitidas por mosquitos, como dengue, zika, chikungunya e malária? Desde março, profissionais do Brasil e de Angola estão debruçados na atualização de um mapa entomológico, que reúne dados sobre a concentração de espécies e os níveis de resistência a inseticidas. Desenvolvido a partir de um financiamento do Banco Mundial, o projeto revela, na prática, o valor de um conceito criado por um grupo de sanitaristas brasileiros, em 2010. 

Base de um modelo nacional de desenvolvimento na área, o conceito de Cooperação Sul-Sul Estruturante em Saúde (CSSE) trouxe como diferencial uma nova forma de estabelecer parcerias internacionais, evitando a transferência passiva de conhecimentos e promovendo a estruturação dos sistemas de saúde locais, por meio da formação de recursos humanos e do fortalecimento institucional, mostra artigo em História, Ciências, Saúde – Manguinhos. No texto, Erica Kastrup, Analice Pinto Braga e Gabriel Lopes fazem uma análise histórica sobre o modelo nacional e destacam o papel essencial do sanitarista José Roberto Ferreira (1934-2019) na sua elaboração e disseminação.  

Na primeira década dos anos 2000, quando a agenda da saúde global discutia a restruturação dos sistemas de saúde e a eficácia da ajuda para o desenvolvimento na área, a saúde conquistou um espaço relevante na política externa brasileira e representou um de seus principais instrumentos para promover a aproximação entre o Brasil e outros países em desenvolvimento no Sul Global. “A ideia era conformar o Brasil como potência emergente capaz de apoiar o desenvolvimento de outros países por meio da cooperação técnica e do intercâmbio de experiências sobre políticas públicas nacionais bem-sucedidas, com destaque para o Sistema Único de Saúde (SUS)”. escrevem os autores. 

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Trabalho de campo em Angola: parceria com a Fiocruz para atualizar o mapa entomológico do país

Integrante do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz), Erica aprendeu a importância do CSSE na prática, ao lado de José Roberto Ferreira, Paulo Buss, diretor do Cris/Fiocruz, e demais integrantes do grupo brasileiro que busca contribuir para que outros sistemas de saúde se fortaleçam de maneira estruturante. “No artigo, contamos como Ferreira foi importante para construir essa ideia de cooperação sul-estruturante e para que isso fosse assimilado como um conceito orientador das ações de cooperação internacional da Fiocruz, que trabalha em nome do governo brasileiro”, diz. 

Ferreira iniciou a carreira na área de pesquisa em cirurgia cardíaca e depois passou a atuar na administração do ensino médico, na Federação Pan-Americana de Faculdades e Escolas de Medicina, na Associação Brasileira de Educação Médica e no Ministério da Educação (MEC), em um contexto de expansão do ensino médico no Brasil, nos anos 1960.  Os estatutos da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) foram elaborados por ele, que também ajudou a definir as diretrizes da Escola de Medicina da Universidade de Brasília (UnB). O projeto do novo curso expressava a importância de uma maior integração entre a formação e a prática nos serviços de atenção básica.  

Alternativa ao modelo biomédico na saúde internacional 

Em 1969, Ferreira iniciou no cargo de consultor regional para educação médica na Opas, onde “passou a aliar a preocupação com os modelos de cooperação em saúde aos princípios progressistas da saúde pública, que adquiriram características particulares nas Américas e conformaram o que ficou conhecido como medicina social latino-americana”. Para os integrantes desse movimento, que ganhou corpo nas décadas de 1970 e 1980, configurando-se como alternativa ao hegemônico modelo biomédico na saúde internacional, o combate e a erradicação das doenças passavam pela mudança nas condições sociais.  

No artigo, contamos como Ferreira foi importante para construir essa ideia de cooperação sul-estruturante e para que isso fosse assimilado como um conceito orientador das ações de cooperação internacional da Fiocruz

Erica Kastrup

Cris/Fiocruz

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José Roberto Ferreira

Então diretor do Departamento de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Opas, onde permaneceu por mais de duas décadas, Ferreira considerava que o modelo vigente de cooperação em saúde atuava de forma unidirecional e gerava um ciclo de dependência. Na virada dos anos 1980 para 1990, a globalização, a emergência da Aids e o ressurgimento de outras enfermidades abriram espaço para a discussão em torno do “enfoque clássico da saúde internacional, que teria sido construído a partir da intenção de capacitar o outro, o diferente, partindo-se da ideia de um Norte, implícito, que deteria o saber”. 

Após mais de duas décadas na Opas, Ferreira chegou à Fiocruz, a convite de Paulo Buss, então vice-presidente da instituição, para atuar na cooperação internacional, onde se tornou coordenador-adjunto do CRIS/Fiocruz. Entre 2003 e 2010, o governo brasileiro, presidido por Luiz Inácio Lula da Silva, buscou alcançar uma posição de liderança no Sul global, diversificando parcerias, principalmente com a África e a América Latina. Não havia uma unanimidade em torno da concepção da CSSE, mas a Fiocruz, representando o Brasil, procurava pautar essas ações com base no conceito criado pelo grupo de sanitaristas liderado por Ferreira. Naquele período, a saúde ganhava destaque na política externa dos países, em razão da “ameaça que a disseminação de doenças representava à segurança dos países” e dos “movimentos que buscavam conformar a saúde como objeto da solidariedade humana e justiça social”. 

“Constituiu-se uma comunidade dentro do Ministério da Saúde, da Fiocruz, da Agência Brasileira de Cooperação (ABC) identificada com esse modelo de cooperação estruturante, em que se trabalha para desenvolver pessoas e instituições em outros países e para compartilhar saberes e tecnologias de uma maneira horizontal”, diz Erica, destacando que a Fiocruz se tornou a a principal instituição assessora e executora da cooperação em saúde no marco da política externa brasileira. A experiência adquirida inspirou o artigo publicado em 2010, no qual a médica Célia Maria de Almeida, então diretora do escritório da Fiocruz em Maputo, Moçambique, Ferreira e Buss apresentaram o conceito de CSSE. 

SUS, Rede de Banco de Leite Humano e resposta à pandemia de Covid-19 

A colaboração internacional firmada para a atualização do Mapa Entomológico de Angola é um exemplo de como a Fiocruz reconfigura demandas e projetos internacionais para adequá-los à concepção da Cooperação Sul-Sul Estruturante em Saúde. “Propomos que o serviço fosse feito não por especialistas da Fiocruz, mas com os especialistas da instituição, em conjunto com equipes de vigilância do Ministério da Saúde de Angola. O mapa entomológico está sendo construído a partir de um grande processo de capacitação que envolveu expedições da Fiocruz à Angola”, relata Érica. 

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Tecnologia nacional compartilhada em mais de 20 países. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Segundo observa, o Brasil desenvolveu, ao longo das últimas décadas, experiências que despertam a atenção de atores no cenário da saúde global, como a formação de recursos humanos para a saúde e o SUS, que se destaca nos fóruns internacionais com a mensagem da saúde como direito: “A cobertura universal em saúde é uma agenda da saúde global. A ideia de cobertura universal se organiza de diferentes maneiras, e o Brasil e a Fiocruz têm experiências importantes para serem compartilhadas. Provemos cooperação técnica dos princípios da universalidade, equidade e integralidade, sobre os quais o SUS está estruturado. Todos os nossos serviços são públicos e gratuitos”. 

Entre as iniciativas de cooperação internacional do governo brasileiro, Erica destaca a Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano (r-BLH-BR), coordenada pela Fiocruz. “É uma tecnologia de baixo custo, desenvolvida na Fiocruz. É uma grande resposta à mortalidade neonatal e infantil no mundo e está em vários países. É um dos nossos maiores exemplos”, enfatiza, acrescentando ainda a resposta do Brasil à pandemia de Covid-19. 

A atuação brasileira na crise sanitária evidenciou o relevante papel da Fiocruz no cenário da saúde global, abrindo novas oportunidades para colocar em prática a Cooperação Sul-Sul Estruturante em Saúde, em futuros acordos internacionais. “O Brasil conseguiu absorver tecnologia rapidamente, fabricar vacina e distribui-la para a sua população gratuitamente, por meio de duas instituições públicas: Fiocruz e Butantan. Essa experiência é um exemplo para o Sul Global e nos aproxima muito de outros parceiros. O Brasil tem uma experiência nisso e se destaca a partir de outras agendas relacionadas ao SUS e que fazem do país um exemplo Internacional”, finaliza Erica.